A expressão popular “no coração de mãe sempre cabe mais um” se aplica perfeitamente à casa de dona Terezinha Antero Leite, de 74 anos. No casebre bem no meio do Quilombo Alto da Serra do Mar, no distrito de Lídice, em Rio Claro-RJ, na região do Comitê Guandu, as portas estão sempre abertas e nunca falta aquele cafezinho na chaleira em cima do fogão, acompanhado de uma batata doce cozida ou da broa de fubá. Coisa de mãe, não é mesmo?

Uma rotina compartilhada pela matriarca não só com os mais de 200 moradores do Quilombo, mas também com aqueles que visitam o local cheio de histórias e que passou a ganhar, segundo a própria comunidade, ainda mais visibilidade desde a implantação no local do programa Produtores de Águas e Florestas (PAF), idealizado e desenvolvido pelo Comitê Guandu.  A atividade agrícola em consonância com a preservação do meio ambiente se tornou um grande atrativo.

Nas terras da antiga Fazenda Sertão do Sinfrônio, diante do olhar sereno e ao mesmo tempo expressivo de dona Terezinha, o verde ganha a imensidão dos 200,55 hectares de área conservada e outros 8 hectares de matas restauradas com o incentivo do Comitê Guandu por meio do PAF.

Mas antes de saber um pouco mais sobre esta relação de sucesso entre o Comitê e o Alto da Serra do Mar, é preciso conhecer sobre a história da comunidade quilombola, marcada no passado principalmente pelo trabalho degradante da exploração e produção de carvão. Quem ajuda a contar a transformação vivida nas terras é o Benedito Bernardo Filho Leite Filho, 51 anos, o Bené, filho de dona Terezinha e do senhor Benedito Leite, o Dito, patriarca do Quilombo.

Basta poucos instantes de conversa com Bené para saber como a referência dos pais é forte na vida dele e no trabalho que desenvolve no Quilombo. 

“Eles são considerados os patriarcas. Minha mãe é uma pessoa muito respeitada, uma espécie de conselheira do Quilombo. A casa dela é como um centro de acolhimento. Todas as crianças passam por lá, gostam de comer a comida dela. Tem cafezinho na chaleira o dia inteiro. Todos chegam a qualquer hora e tomam. É uma pessoa que passa tantos saberes para os mais novos. Ela gosta de falar isso, gosta de falar da história dela, do crescimento dela no Quilombo desde pequena. Da luta para chegar até onde chegou”, contou Bené.

Mãe de 11 filhos, dois deles já falecidos, e avó de mais de 30, dona Terezinha não esconde o orgulho de ser uma referência para o Quilombo, onde mora a maioria dos seus familiares. Mesmo aquelas pessoas que não tem grau de parentesco a veem como a mãezona da comunidade.

“Eu considero todos do Quilombo como se fossem meus filhos. Me sinto feliz por ter uma família sempre do meu lado, meus filhos, meus netos e sobrinhos”, disse dona Terezinha.

“Fuga da escravidão”

A história dela se mistura com a do Quilombo, lugar que habita desde os três anos de idade. A comunidade surgiu depois que famílias saíram fugidas do trabalho análogo à escravidão da região de Bananal no interior paulista para Rio Claro, segundo Bené, nos anos de 1950. Elas trabalhavam com a exploração do café, palmito e madeira para carvão e recebiam de volta apenas comida. Mas, o problema enfrentado lá só mudou de lugar. No interior do Rio, sofreram também com os atravessadores e depois os grileiros.

“Meus pais chegaram à região junto com a primeira geração para fugir da escravidão. Vieram em busca de uma vida melhor em Rio Claro, no alto da Serra e também se depararam com a mesma atividade até o início da década de 90 quando foi enfraquecendo a exploração do carvão. Depois enfrentaram os grileiros que diziam ser donos das terras e tivemos que resistir”, comentou Bené.

Foi neste cenário de luta que dona Terezinha se tornou dona de casa aos dez anos de idade, quando na separação dos seus pais passou a ser responsável pelos afazeres do lar.

“Os pais delas se separaram e ela foi criada pelo pai. Virou dona de casa cedo para cuidar dele e dos irmãos. Mesmo depois de casar com meu pai, ela continuou cuidando das coisas do pai dela. Enfrentou dificuldade para criar os filhos… não era fácil. Hoje ela leva uma vida um pouco mais tranquila, se comparada com os anos dificuldade para criar todos os filhos. Até na hora do nascimento era difícil. Na época da minha geração não tinha médico no Quilombo. A nossa própria tia Sebastiana que era a parteira”, afirmou Bené, ressaltando também todo o cuidado que a mãe tem com o marido Dito, com quem já está casada há 57 anos.

Mesmo em meio às dificuldades, dona Terezinha transformou tudo em amor, principalmente com a culinária. Por ter aprendido a cozinhar bem cedo, faz coisas saborosas, como doces e outros pratos típicos, como a galinha com quiabo ou aipim, além do angu com aquele tempero incomparável, que fazem da casa dela e seu Benedito a parada certa para quem vai conhecer o Quilombo. Tudo ainda mais especial pelo sorriso receptivo da matriarca.

“Ela faz questão de trabalhar muito ainda. Com 74 anos, ela faz doces, cuida da casa, das criações. Ela não para! É o dia inteiro assim. É muito ativa”, destacou o filho.

PAF trouxe benefícios para além do meio ambiente

 A luta pelo reconhecimento da comunidade como o Quilombo Alto da Serra do Mar também exigiu muito dos moradores, o que só ocorreu no ano de 2000 pela Fundação Palmares. A partir daí o lugar passou receber um pouco mais de atenção, segundo conta os quilombolas. Com o surgimento do Produtores de Águas e Florestas (PAF), em 2009 no município de Rio Claro, a comunidade foi uma das primeiras a ser beneficiada pelo programa pioneiro no ramo de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), criado pelo Comitê Guandu.

“A gente já conciliava a cultura da agricultura e preservação do meio ambiente. Mas, com a chegada do PAF, nós passamos a fazer isso com mais aperfeiçoamento. Foi um ganho muito grande, porque além de ganhar com a floresta, com a produção da água, que é um bem comum para todos, a área de preservação em nossa propriedade ajudou também na parte econômica. Esse programa nos trouxe muitas visitações, inclusive com pessoas que agendam para conhecer as áreas e o quilombo. Aproveitam para saber como é produzir e preservar ao mesmo tempo. Isso ajuda na venda dos nossos produtos, como doces, queijos e outros produtos da agricultura familiar. O turismo começou a ficar mais movimentado na nossa comunidade”, relatou Bené, elencando as receitas de sucesso que a mãe ensina às novas gerações, como a bananada sem açúcar, os doces de leite, mamão, abóbora e pêssego.

Com o PSA, são pagos anualmente cerca de R$ 11 mil à comunidade. Segundo Bené, que é o presidente da associação quilombola, tudo é investido em benefício do lugar, que, com o programa, teve até sua escola ampliada. Também são compradas sementes para o plantio do feijão, milho, aipim, abóbora e hortaliças. Os produtos cultivados são orgânicos e certificados pelo Ministério da Agricultura. A geração de renda com o aproveitamento da mão de obra local no plantio de mudas também é salientada por ele.

“A gente nem esperava que chegaria a este ponto, pensava que era somente preservar. O pensamento era: vamos preservar que a gente precisa de uma água boa e até com medo de faltar até para o consumo da comunidade. Nós nem pensávamos nas outras pessoas mais abaixo. Só que aí veio a consciência: se a gente precisa, quem está mais abaixo e não tem as nascentes dentro das suas propriedades dependem das nossas águas para sobreviver. E aí nós fomos tomando consciência na medida que íamos participando mais do projeto. Conseguimos restaurar nossas matas ciliares nos rios que estavam tudo descampados, restauramos nossas nascentes todas. As que estavam em situação precária, sem florestas, nós recuperamos a vegetação no entorno”, completou o líder comunitário.

A restauração da mata, de acordo com ele, trouxe de volta à área animais que há anos não eram vistos por lá. Além disso, garantiu também a permanência dos quilombolas mais jovens na comunidade, já que muitos se mudavam por falta de oportunidade. Para os mais velhos, é a certeza que toda luta tem valido muito à pena.

“Para os meus pais que viveram uma vida que não teve nem o privilégio de estudar, aprendendo tudo na prática, hoje eles veem a preservação do meio ambiente como um benefício, porque ao longo dos anos foram vendo as coisas acontecerem através do Programa Águas e Florestas”, destacou Bené.

Modelo de sucesso 

O Programa Produtores de Água e Floresta é desenvolvido dentro da agenda de infraestrutura verde do Comitê Guandu. A iniciativa já resultou na conservação e recuperação de mais de 5000 hectares de Mata Atlântica, até o momento, e já retribuiu aos produtores rurais locais em mais de dois milhões de reais.

De acordo com o gestor do programa de Produtores de Água e Floresta, Leandro Barros Oliveira, especialista em Recursos Hídricos da AGEVAP, o Quilombo Alto da Serra do Mar representa um dos vários exemplos de sucesso do PAF. “São pessoas que viveram muitos anos da produção de carvão vegetal e tiveram essa guinada para o ramo da conservação e restauração das florestas. A maior parte da propriedade é área de conservação”, destacou Leandro.

Com a aplicação do Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e principalmente a conscientização e mudança de atitude da população local, o programa se tornou um exemplo consolidado, modelo para projetos dentro e fora do país.

“O PAF é um dos projetos de maior longevidade dentre as ações executadas com aporte de recursos do Comitê Guandu. Ele começou em 2009, no município de Rio Claro, sendo um programa pioneiro no ramo de PSA, que consiste no reconhecimento do proprietário rural como provedor de serviços ambientais e ecossistêmicos”, afirmou o gestor do programa.

A partir de 2018, o programa se expandiu para os municípios de Mendes, Engenheiro Paulo de Frontin e Vassouras.